O idoso que não enxergou a cor da minha pele #PersonagemAnonimo #1


Ontem à tarde (23) no hortifruti do meu bairro, popularmente conhecido como varejão, fui abordada por um idoso pedindo ajuda para escolher laranja [sic] ponkan, pois não enxergava bem e não conseguia saber qual era era dentre tantas na gôndola. Ao olhar as etiquetas rasuradas nas gôndolas falei que também não sabia qual era porque não dava pra identificar e como não sou uma cozinheira muito boa só sei identificar pelo sabor e não pelo formato e textura. Disse que poderia chamar um atendente para auxiliá-lo. Ele agradeceu e saiu andando. Poucos minutos depois o mesmo senhor estava abordando outra cliente perguntando sobre laranja lima e alegando não enxergar bem. Achei engraçada a situação e segui com minhas compras. Pensei comigo acho que ele não sabe ao certo que laranja comprar.

Crédito: FreeImages.com/Rick Hoppe (#1314810)
Crédito: FreeImages.com/Rick Hoppe (#1314810)

Quando estava guardando minhas compras na porta malas do carro fui pega de surpresa pelo mesmo idoso que sorrateiramente se aproximou com o mesmo papo de não enxergar bem. A princípio tive um pouco de receio e pensei que poderia ser algum tipo de distração para algum golpe ou furto… sei lá. São tantas maldades no mundo sendo praticadas por crianças, jovens, adultos e idosos que não sabemos identificar direito o que pode acontecer. Apesar do susto mantive a conversa de forma desarmada, porque poderia estar enganada com essa primeira impressão. E realmente estava!

Ele explicou que seu filho ficou de vir pegá-lo, mas não apareceu. E por não enxergar direito estava com medo de ir pra casa sozinho: atravessar a rua com suas compras pesadas. Com um sorriso meio banguela, olhos fundos e voz rouca pediu carona envergonhado.

Pensei comigo: quanta negligência dessa família deixar um idoso ir ao varejão sozinho dependendo de ajuda de terceiros para comprar, ver troco e voltar pra casa e meu coração doeu por desconfiar do velhinho. Ele poderia ser roubado ou se machucar andando pelas calçadas esburacadas. O que será que aconteceu com o filho desse senhor que não chegou a tempo?

 

A três quadras

Dei carona pra ele que no caminho explicou que um colírio usado pós-cirurgia estragou de vez a visão dele. E que estava muito difícil fazer as coisas e depender das pessoas.

Imaginei como deve ser cruel essa situação! Para mim seria o fim, já que sou meio durona e independente demais. Morreria se tivesse que ficar pedindo ajuda toda vez que quisesse fazer algo.

Ao chegar em frente à sua residência ele gentilmente agradeceu dizendo que iria orar por mim e me emocionei com suas palavras afetuosas. Só que duas casas pra frente haviam algumas senhoras sentadas que ao me verem se aproximar da casa do velhinho ficaram com os olhos arregalados, boquiabertas e estupefatas. E congelaram a imagem facial ao ver o senhor descer do meu carro.

Na hora identifiquei aquele olhar de pavor e intolerância, sei bem como ele é… aquele olhar de não acredito que ele esteja andando com essa moça negra estranha com turbante na cabeça. Já vi esse olhar inúmeras vezes e reconheço-o à distância: aquele olhar de quem só reconhece a cor da pele de uma pessoa. Tentei não ficar “bitolada” achando racismo e preconceito (1) em todos os cantos, mas ele é inegável, pois queima na pele e rasga o coração.

Manobrei o carro sorri feliz e zarpei de lá pensando que fiz uma coisa boa para alguém. Deixei aquele sentimento hostil quando dobrei a esquina. Tenho buscado cotidianamente na minha vida pequenas coisas e sentimentos que fazem a vida valer à pena!

Ao chegar em casa fiquei pensando em como estamos vivendo num mundo tão violento, intolerante e desumano que nos assustamos e ficamos desconfiados ao sermos abordados por um simples idoso na rua. E senti vergonha do meu medo ou preconceito inicial e pensei que talvez se ele enxergasse um pouco melhor teria visto a cor da minha pele e sentido receio em pedir carona para uma “jovem” negra de turbante no varejão do bairro. Esse pode ser até um pensamento preconceituoso, racista e bem exagerado da minha parte, mas nada que não possa ser verdade, creio eu! É o racismo e preconceito à brasileira de todos os dias! #lamentavel

Mesmo assim fiquei muito feliz por ser, entre tantas pessoas naquele estacionamento, escolhida para conduzi-lo até sua casa. Ganhei o meu dia!

1 – Qualquer opinião ou sentimento concebido sem exame crítico. Sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio; intolerância. Conjunto de tais atitudes. Qualquer atitude étnica que preencha uma função irracional específica, para seu portador. (Dicionário Web)

4 respostas para “O idoso que não enxergou a cor da minha pele #PersonagemAnonimo #1”

  1. Certamente estamos ensimesmados; inseguros; às vezes, nos preocupamos se devemos falar com determinada pessoa porque reagimos a tudo; reação mesmo no sentido de estar armado para uma guerra. A gente evita certos lugares, certos horários, certas pessoas. Como se fosse possível se esconder da gente mesmo. Quando vê ñ é a condição solitária que os afeta, somos nós que trancamos a vida lá fora; por isso qdo surge qualquer projeto q propõe ocupação da praça, do parque, da estação, da rua, a gente age com surpresa achando o máximo. Qual é mesmo a novidade da gente socializar!

    • Acredito que a violência e o preconceito nos impõe mais cautela e medo de socializar.
      Por isso, precisamos exercitar mais a empatia, humanizar as relações e estarmos dispostos a transformar nossa sociedade, pois só assim construiremos um país socialmente justo.

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